sexta-feira, 10 de março de 2017



O VERBO FOR
Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas (…)
O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês, e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito ruibarbosianamente quando possível, com citações decoradas, preferivelmente (…)
Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma certa vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante.
Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra “for” tanto podia ser do verbo “ser” quanto do verbo “ir”. Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
– Esse “for” aí, que verbo é esse?
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
– Verbo for.
– Verbo o quê?
– Verbo for.
– Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
– Eu fonho, tu fões, ele fõe – recitou ele impávido. – Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

(João Ubaldo Ribeiro, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 23/09/1998)

Responda às questões relativas ao texto:

1. O narrador cria uma palavra nova do segundo parágrafo, a partir do nome de um político e escritor do século XIX. Ficou conhecido pelo esmero com que tratava a língua portuguesa em seus discursos. Destaque a palavra e informe qual é o nome do político a que o escritor se refere.

2. A partir do texto, o que se pode deduzir sobre o conhecimento do candidato a respeito de verbos?

3. Pela forma como o candidato conjugou o verbo solicitado, que verbo ele tomou como modelo?

4. Pode-se perceber que o narrador termina o texto de forma irônica ao criticar a política ou certos políticos. Em que consiste essa crítica?
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 Gabarito: 
1. A palavra é “ruibarbosianamente”, neologismo criado por João Ubaldo Ribeiro em referência a Rui Barbosa, político baiano, que se destacou por seus discursos patrióticos.

2. Pela resposta do candidato à pergunta que lhe foi feita, pode-se concluir que ele nada sabia sobre verbos.

3. O candidato conjugou baseado no verbo pôr.

4. Percebe-se pela forma irônica do narrador que ele está se referindo ao despreparo de algumas pessoas que ocupam cargos públicos.






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